Antes da estação das chuvas, uma frente fria chegou e as águas despertaram o temor da população. Então, o inesperado a impediu de cumprir os seus objetivos. Em uma noite fria de primavera, choveu intensamente por horas, as águas do rio subiram e as casas do bairro foram levadas como se fossem de papéis. A casa da mulher foi atingida pela fúria das águas, não houve tempo para fugir. Entretanto, os seus olhos despertaram novamente para enxergar a verdadeira tragédia. Coberta de lama e sem ter noção do que havia ocorrido, ela se levantou, cheia de feridas pelo corpo, caminhou por um longo tempo em um lamaçal irreconhecível. Em desespero, a mulher gritava o nome dos filhos e do marido, o seu bairro não existia mais. Naquele fatídico instante, ela se deu conta de que estava livre, como havia sonhado, todavia, uma dor insuportável a deixou sem fôlego, lágrimas tomaram os seus olhos por compreender a possibilidade da perda.
Diante do próprio desespero, ela começou a cavar com as mãos a lama que estava embaixo dos seus pés. Enquanto cavava à terra, uma angústia a possuiu de tal forma que surgiram em sua mente dois temores: o primeiro era não os encontrar e o segundo era de encontrá-los sem vida. Alguns gritos distantes ecoavam entre a escuridão e a chuva fina. Antes do sol nascer, ela foi resgatada por um socorrista que a levou para um abrigo. Em choque, ela não conseguiu descansar, cuidaram das suas feridas e somente com uma dose de calmante, ela adormeceu. Ao despertar no dia seguinte, a mulher estava tão confusa que até questionou a veracidade das suas lembranças. Ela voltou a chorar, pedindo perdão a Deus. Ali ela descobriu a própria maldade, a culpa a tomou quando conheceu a proporção do seu egoísmo. Apesar dos sentimentos que a torturavam, ainda existia dentro dela uma pequena esperança de encontrar cada um deles para pedir perdão, principalmente, por sua ingratidão.
Horas depois, um bombeiro se aproximou dela com papel e caneta nas mãos e um semblante triste. De longe, ela já imaginou o pior. Ele revelou que nas buscas não havia mais nenhuma casa, nem mesmo sobreviventes, apenas ela, concluiu que os corpos foram encontrados em meio aos destroços e que lamentava profundamente. O único desejo daquela mulher, ao ouvir cada palavra, era o desejo pela morte, para estar com eles, para tentar se redimir. Diante dos fatos, a sua essência se calou, os seus sonhos perderam o sentido e a culpa se tornou uma companhia eterna para enfim ela viver os seus sonhos. Entretanto, o tempo passou, a mulher experimentou novas oportunidades em sua jornada, novos amigos, novos trabalhos, tudo, menos uma nova família. Por fim, ela descobriu que a liberdade não era tão saborosa quanto imaginava, porém, jamais murmurou novamente e passou a valorizar cada detalhe da sua vida e também da sua nova e melhor versão como mulher.
Nenhum comentário